O crime no Brasil mudou de forma — e de ambiente. Nos últimos anos, o país vivenciou uma reconfiguração profunda: enquanto os assaltos nas ruas diminuem, as fraudes digitais crescem em ritmo acelerado. Em 2024, a taxa de homicídios do país atingiu seu menor nível em mais de uma década (embora o Brasil ainda registre uma das maiores taxas de assassinatos do mundo).
A queda nos crimes tradicionais não significa menos criminalidade — mas sim uma mudança no modus operandi de parte dos criminosos. Enquanto os crimes de rua recuaram, as fraudes e os golpes cresceram em um ritmo alarmante.
A Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN) registrou um aumento de 17% nas perdas com golpes no Brasil entre 2023 e 2024, com prejuízos que superaram os R$10 bilhões (aproximadamente US$1,7 bilhão). Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada hora, mais de 4.600 brasileiros recebem algum tipo de mensagem de golpe.
Dos roubos às fraudes: uma mudança estrutural
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que os registros de fraudes quadruplicaram entre 2018 e 2023, passando de 426.799 para 1.965.353 casos — o equivalente a um golpe a cada 16 segundos. No mesmo período, os roubos caíram de 1.506.151 para 870.320 casos.
A fraude agora é o crime patrimonial mais comum no Brasil. O ponto de virada parece ter sido a pandemia de 2020. Com a redução da mobilidade física, os criminosos migraram dos crimes presenciais para a fraude digital. Já em 2021, os golpes superaram os roubos. A menor atividade nas ruas e o aumento das interações online facilitaram essa transição — e os criminosos, ao que tudo indica, não olharam para trás.
A revolução digital do crime
A rápida digitalização do Brasil — com acesso à internet e popularização dos smartphones — levou grande parte da vida cotidiana dos brasileiros para o ambiente online. Do banco às compras, das redes sociais ao entretenimento, os novos hábitos digitais abriram novas oportunidades para os golpistas. A alfabetização digital, porém, não acompanhou esse ritmo: cerca de 70% dos golpes financeiros no país envolvem engenharia social.
É cada vez mais evidente a presença do crime organizado por trás das operações de golpes, usando os lucros para financiar facções e milícias. A fraude se tornou uma fonte de receita relevante, substituindo atividades mais arriscadas como o tráfico de drogas ou de armas. Esses grupos criminosos utilizam dados vazados e compram informações pessoais para ligar para as vítimas munidos de informações privilegiados — o que aumenta significativamente suas chances de sucesso. Muitos operam verdadeiros call centers do crime com estruturas profissionais para enganar vítimas em escala, realizando milhares - ou até milhões - de ligações por dia.
Hoje, os fraudadores utilizam apps falsos, ataques de phishing, golpes de relacionamento e até invasões de dispositivos para roubar dados. Hoje, com o apoio da inteligência artificial generativa, os golpistas produzem vozes falsas, vídeos realistas e campanhas de engenharia social automatizadas com alto grau de sofisticação — e escala.
Alguns crimes misturam táticas físicas e digitais, como o roubo de celulares para acessar aplicativos bancários ou golpes via Pix após sequestros-relâmpago. Esses métodos oferecem alto retorno com menor risco.
O sistema legal brasileiro ainda não se adaptou a essas mudanças. A primeira lei dedicada à fraude digital só foi sancionada em 2021, e sua aplicação ainda é fraca, com baixas taxas de resolução. O projeto de lei 4.161/2020, em tramitação, visa aumentar as penas para fraudes digitais em até dois terços. Autoridades também defendem a reestruturação das delegacias e o investimento em perícia digital.
Um problema caro
Bancos e fintechs responderam ao aumento da fraude investindo bilhões em tecnologias de prevenção — estima-se que R$4,5 bilhões foram gastos em 2023, frente aos R$3,2 bilhões em 2022.
Segundo dados do Banco Central, as transações via Pix saltaram de 1,04 bilhão em setembro de 2021 para mais de 4 bilhões em setembro de 2023. Apesar da rápida adoção, cerca de 9% dos usuários relataram já ter sofrido algum tipo de fraude via Pix. Como resposta, os bancos agora podem atrasar pagamentos suspeitos — processo aprovado pelo Banco Central, que autoriza a retenção temporária de um volume específico de transações para análise de risco. Outra camada de proteção é o bloqueio cautelar, que permite ao banco receptor reter os fundos por até 72 horas quando houver suspeita de fraude.
As equipes antifraude operam 24 horas por dia, monitorando e sinalizando contas suspeitas. De acordo com a pesquisa do Datafolha de 2024, ocorrem mais de 4.500 tentativas de golpe financeiro por hora no Brasil — mais de 39 milhões por ano. A tática mais comum envolve criminosos se passando por funcionários de bancos, via ligações ou mensagens. Ainda assim, acredita-se que esses números sejam subnotificados, o que agrava os custos operacionais e os riscos reputacionais — especialmente diante da crescente pressão regulatória global por ressarcimento às vítimas, o que ainda não é uma realidade no Brasil.
Mas os criminosos também se adaptam. Recentemente, quadrilhas brasileiras expandiram suas operações e começaram a atacar bancos europeus.
O comportamento como defesa da segurança digital
Embora campanhas de conscientização, esforços policiais e regulamentações precisem evoluir, é essencial equipar as instituições financeiras com ferramentas capazes de detectar e interromper fraudes em tempo real — antes que o dinheiro saia da conta da vítima e antes que se espalhe em diversas contas de passagem.
A biometria comportamental tem se mostrado uma camada crítica de proteção para os usuários e para o sistema financeiro como um todo. Países com marcos regulatórios mais robustos conseguiram impulsionar a adoção de tecnologias avançadas de prevenção.
Essas tecnologias conseguem identificar anomalias sutis durante tentativas de golpe, como sessões anormalmente longas, chamadas ativas durante transações, sinais de estresse ou padrões de navegação erráticos — detectando em tempo real quando o usuário está sendo manipulado, como nenhuma outra tecnologia consegue fazer.
Além disso, a análise comportamental não protege apenas as vítimas, mas também ajuda a identificar contas de passagem ou laranja antes que sejam usadas para lavar dinheiro. Ao identificar inconsistências no uso e no perfil de comportamento, as instituições podem agir preventivamente, bloqueando contas ou impedindo que os recursos sejam transferidos rapidamente para terceiros.
Ao mesmo tempo, o setor financeiro deve colaborar no compartilhamento seguro de dados, utilizando informações anonimizadas para equilibrar privacidade e proteção, promovendo inovação sem fricção para os usuários — e reforçando a confiança em todo o ecossistema.
O que vem pela frente
A fraude digital não é mais apenas um problema bancário — é um problema de segurança pública que exige respostas rápidas. O que antes se limitava às instituições financeiras agora afeta toda a sociedade: aposentados, cidadãos comuns, pessoas vulneráveis — muitos dos quais perdem suas economias de vida. O crime organizado evoluiu, investindo em call centers criminosos e em tecnologia para aperfeiçoar táticas de engenharia social. O resultado é que, enquanto o crime violento diminui, a fraude financeira dispara — impulsionada por retornos altos e penas brandas. A digitalização dos serviços financeiros também facilitou a criação e operação de contas laranja, que servem como porta de entrada para a maioria desses crimes. Mesmo assim, o país ainda carece de um marco legal para enfrentar essa ameaça crescente.
A mudança do crime físico para o digital no Brasil exige um novo paradigma de prevenção e resposta. À medida que os golpistas se tornam mais sofisticados, o país precisa fechar essa lacuna. É preciso armar as instituições financeiras com a tecnologia necessária para proteger os ativos dos brasileiros e construir a confiança digital em toda a sociedade.
Com ação coordenada, o Brasil pode virar o jogo — mas para conter essa nova era do crime, será preciso reagir com o mesmo rigor, sofisticação e escala que os criminosos já vêm demonstrando. Só assim o mundo digital poderá se tornar tão seguro quanto o físico — ou até mais.